O problema da Habitação em Portugal

 

Com a aprovação da Lei de Bases da Habitação, no ano passado (2019), consagrou-se um direito constitucional fundamental para que se possa aceder outros, como a Educação, a Saúde, a Proteção Social e até mesmo o Emprego. Esta condição deve elevar, por isso, o investimento nesta área, que tem tido tão pouca expressão nas políticas sociais.

Dando luz a uma pequena resenha histórica, é possível observar, em Portugal, quatro momentos que marcaram as Políticas de Habitação: durante o Estado Novo, o acesso habitação funcionava em grande maioria através do livre mercado, havendo pontualmente medidas de apoio ao arrendamento; após o 25 de Abril, assistiu-se a um maior investimento público, que se traduziu maioritariamente em crédito bonificado, facilitando o acesso a habitação própria e permanente, mas também a promoção das rendas moderadas e das cooperativas de habitação; o terceiro momento tem início em 1986, data em que Portugal aderiu à CEE, e ficou marcado com o princípio do dinamismo do Instituto Nacional de Habitação, o que potenciou a iniciativa privada e cooperativa, promoveu-se a habitação a custos controlados, o arrendamento e as contas poupança à habitação; por fim, em 1993 temos o culminar de um debate riquíssimo, sob ponto de vista técnico e cientifico, levando à aprovação de vários programas habitacionais, como o Programa Especial de Realojamento, sistemas de apoio ao arrendamento para jovens ou rendas apoiadas e de habitações sociais para venda.

A leitura do contexto histórico permite-nos entender a exclusão da classe média e dos jovens, tanto nas políticas de habitação social, como nas políticas sociais de habitação.

Isto, num tempo em que, apenas 2% do parque habitacional é público (a média europeia é de 15%) e a maioria por reabilitar (sobretudo para atingir patamares de conforto e de eficiência energética que permitam a habitabilidade digna), 26 mil famílias vivem hoje em situações habitacionais extremas, 12 mil em barracas e construções precárias e, aproximadamente, 330 mil já pediram o adiamento do pagamento da prestação da sua casa (o que aumentará em 1,2% do valor final da prestação).

Entre 1991 e 2015, o número de famílias cresceu de 3.200.000 para 4.080.000 (21,56%), e o número de habitações subiu de 4.003.000 para 5.900.000 (32,15%). Ou seja, um problema inverso ao que tínhamos no 25 de Abril, de falta de alojamentos, passamos a ter excesso relativamente à população. O problema não é a falta de habitação, o problema é que muitas estão degradadas, devolutas, localizadas em zonas não atrativas, ou a preços que as famílias não têm capacidade de pagar – o problema é a falta de habitação acessível. Simultaneamente, outro paradigma que inverteu foi que, no 25 de Abril, 46% da população portuguesa estava alojada por meio do arrendamento e a restante habitação própria, em 2011, 25% tinha habitação por via do arrendamento e 75% em própria. No entanto, a questão que se coloca face a estes em 75% em habitação própria, é que metade deles está a pagar mensalmente, não uma renda, mas uma prestação ao banco.

E isto é relevante entender, porque o maior fator do peso de endividamento das famílias em Portugal é o acesso à habitação, seja por via do arrendamento, seja pelo pagamento do empréstimo à banca. Aliás, endividamento esse que em 30 anos, de 1981 a 2011, multiplicou-se seis vezes. Essa tendência tem-se mantido, tendo atingido um patamar em que os encargos com os empréstimos aproximaram-se em média dos encargos com o arrendamento, tendo, nesta última década, compensado mais recorrer a um empréstimo do que arrendar.

A aprovação da Lei de Bases da Habitação foi um momento importante, no entanto, estamos hoje perante outro desafio. Temos 26 mil famílias com carências habitacionais extremas detetadas pelo IHRU há dois anos e 330 mil que pediram moratórias. Havia a dúvida do que aconteceria depois do dia 1 de outubro, decidiu-se adiar, ficamos com a dúvida do que acontecerá em abril de 2021. A atitude tem sido adiar o problema, que tem vindo a ser tenuemente mitigado com apoio do IHRU, que tem pago algumas rendas. Para mais, o Programa Arrendamento Acessível do Governo, é fraco e sem expressão.

É fundamental que dentro do mercado de habitação, o Estado tenha a capacidade de intervir (conforme apontado pela OCDE), através das autarquias locais, para aumentar a oferta pública, ajustar os valores das rendas e transformar os alojamentos locais em arrendamento acessível, alugando e subalugando às famílias que mais precisam e em que há o dever em que estejam identificadas. O Governo tem também a obrigação de apresentar um Programa Nacional de Habitação, o que, infelizmente, também nunca aconteceu – a Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) é uma resolução de um Conselho de Ministros, com uma série de instrumentos.

Tem havido, também, a necessidade de uma alteração profunda da Lei das Rendas. Da dualidade Inquilinos - Senhorios, que já não representa a nossa realidade, é fundamental não só equilibrar os direitos entre estes dois agentes, mas também acrescentar um terceiro, os Mediadores.

Da mesma forma que, olhando para o mercado de arrendamento, a dualidade Social – Livre Mercado também já não funciona. É necessário criar o Acessível, através dos custos controlados na construção e custos acessíveis no arrendamento.

A própria Lei de Bases da Habitação, que tem um período de 9 meses para ser regulamentada, e cujo prazo terminou em junho do ano corrente, não aconteceu. Mas seria oportuno abordar o artigo 13.º, que faz referência aos despejos, e trabalha-lo no sentido de clarificar os diversos tipos de despejos: sejam os de má-fé, sejam os por incumprimento. E nos casos de incumprimento em que o inquilino está prestes a perder a habitação, o Estado tem o dever, segundo a lei, de prestar apoio. Mas falta também esclarecer que tipo de apoio.

E a verdade é que, mesmo perante um contexto pandémico, os preços da habitação não vão descer, porque os empréstimos que as pessoas estão a pagar aos bancos tem por base uma avaliação imobiliária. A pari passu, o desemprego vai aumentar e atingir os que tiverem menores qualificações e procurem o seu primeiro emprego, a incapacidade de os jovens emanciparem-se e gerarem famílias para manter o futuro do Estado Social vai ser mais dificultado, os moradores dos bairros autoconstruídos e de realojamento e os trabalhadores da construção civil que possuem vínculos contratuais mais frágeis terão menor proteção social.

Saibamos, por isso, olhar para o problema da habitação, não como um problema de mercado, mas para um problema que, caso não seja combatido, irá expor e acentuar desigualdades. Um problema que hipotecará quer o futuro do Estado Social, quer o futuro da Democracia.

 
21 Fevereiro de 2020

Martim Guimarães da Costa, arq.

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