Cartas Municipais de Habitação: contributos para uma visão estratégica




Sendo a Carta Municipal de Habitação (CMH) o instrumento municipal de planeamento e ordenamento territorial em matéria de habitação, a articular, no quadro do Plano Diretor Municipal (PDM), com os restantes instrumentos de gestão territorial, as Cartas devem estabelecer quais as prioridades dos municípios em matéria de habitação (p. ex.: aumentar e melhorar a oferta de habitação, reduzir assimetrias no acesso à habitação e regenerar o tecido urbano  histórico, envelhecido e devoluto, promovendo a coesão social).


1. 

No entanto, a Lei de Bases de Habitação (LBH) apenas prevê a figura da CMH, esgotando o seu meio de ação nos limites administrativos dos respectivos  municípios, ou seja, falta criar a dimensão supramunicipal. Assim, ignora-se a lógica de interação entre territórios de concelhos vizinhos em duas dimensões:


– A primeira, entender que, muitos concelhos vizinhos gozam, sob ponto de vista sociológico, de uma forte interdependência entre si. Se analisarmos, por exemplo, a população residente, a variação populacional, os movimentos pendulares, o tempo de deslocação (sobretudo na relação espaço doméstico – local de trabalho), verificamos que existem municípios em que faz sentido a promoção de uma Carta de Habitação que seja comum a esses concelhos – uma espécie de Carta Intermunicipal de Habitação;

– Posteriormente, porque a abertura resultante destas fronteiras esbatidas traduzir-se-ia na possibilidade de cooperação, no sentido de mobilizar os recursos financeiros e humanos dessas autarquias, haveria a necessidade de procurar nivelar com a capacidade operacional das câmaras municipais de maior dimensão (que, grosso modo, possuem mais técnicos).

Ambas as situações confluiriam para um diagnóstico mais rigoroso, mais fino, o que permitia não excluir o novo perfil de procura de habitação, a precariedade invisível e a envergonhada.


2. 

As ELH são, em síntese, um diagnóstico quantitativo e qualitativo das carências habitacionais de um determinado município, caso esse mesmo município pretenda obter financiamento para resolver as carências habitacionais identificadas na respetiva Estratégia. Deste modo, as medidas, operações e intervenções propostas na candidatura inscrita ao Programa 1.º Direito servem para responder às carências habitacionais detectadas na Estratégia. Ou seja, ambas gozam de reciprocidade entre si e uma não pode ser analisada sem a outra. 

Assim, conforme se tem constatado, esta situação de interdependência tem colocado quatro problemas: 


Os levantamentos foram realizados de forma muito – talvez demasiado – célere, porque, no momento em que as autarquias decidem avançar para a candidatura ao Programa 1.º Direito, há que aprovar rapidamente, dado tratar-se de fundos concorrenciais e com um horizonte temporal muito reduzido (2026, com possibilidade de prorrogação até final de 2027); 

Levantamentos que, em muitos casos, não tiveram a proximidade com o território que se exigia, seja por se ter vivido uma pandemia que dificultava o contacto com a realidade local, seja porque as equipas que as elaboraram, pressionadas pelo tempo, não tinham recursos humanos e financeiros para empreenderem um correto diagnóstico quantitativo e qualitativo das carências habitacionais.

– Estratégias que foram aprovadas com base em dados estatísticos de plataformas eletrónicas de agências imobiliárias que promovem a compra/venda/arrendamento de imóveis.

– Por fim, é que muitas destas ELH foram realizadas com orientação para o Programa 1.º Direito. Ou seja, sofreram desvios, se quisermos vícios, para dar resposta ao que executivos municipais pretendiam (p. ex., resolver edifícios degradados de propriedade municipal).

No entanto, apesar de alguns erros de método, de servirem vontades políticas discutíveis, possuírem pontualmente erros e omissões, as ELH são uma excelente base de diagnóstico, cujo estudo deverá ser incorporado nas futuras CMH.


3. 

Os recursos públicos disponíveis deverão ser devidamente discriminados, sejam os meios humanos, os financeiros (patrimoniais), com a possibilidade de serem mobilizados pela dinâmica dos privados (parceiros) e dos cidadãos (que, coletivamente, podem organizar-se através das associações de moradores bem como das cooperativas de habitação que se pretendam criar).

Assim, as Cartas de Habitação deverão possuir também o desenho da rede de colaboração local, a definição dos âmbitos de atuação e a diversificação dos profissionais, com vista a uma estratégia global de intervenção nos diversos setores sociais (público, privado e social), procurando diversificar os modelos de promoção nos diversos segmentos do mercado habitacional.

Nesse sentido, importa referir que ficarão reunidas as condições para que se promova, a partir dos Conselhos Locais de Habitação, o movimento cooperativo de habitação (que só conseguirá atingir a sua máxima expressão, aquando a dissociação do direito de propriedade do direito de uso, para que a propriedade permaneça da cooperativa e só o uso seja transmissível aos moradores, salvaguardando assim o papel inicial da cooperativa, o de permitir o acesso dos mais desfavorecidos aos centros urbanos).

Outra dificuldade, para além dos cidadãos nacionais com carências habitacionais, em determinadas localidades tem-se vindo a sentir a necessidade de desenhar uma resposta também para os cidadãos estrangeiros, os que temos vindo a acolher e alguns ainda por vir (falo, sim, de refugiados vindos de uma guerra que teima em não querer terminar).


4. 

A relação com os Instrumentos de Gestão Territorial: não se resolve o problema de habitação de forma isolada, sem olhar para o contexto – e esse tem sido o grande erro do debate público. É preciso uma noção mais vasta de território, para além da do “metro quadrado”, perceber os percursos, as principais ligações das cidades policentradas, que “cosem o território”, como pulsam e a que intensidades as artérias urbanas mediante os horários específicos, o tempo de deslocação dos cidadãos (cidade-trabalho-comércio), no sentido da aproximação da tal ideia das “cidades 15 minutos”. 

Entender, sobretudo na perspetiva das autarquias locais, as ruas não mais como mera rede viária, mas como espaço público, que não servem só para circulação automóvel.

Entender, por fim, uma verdadeira lógica de contenção urbana, com uma estratégia para os fundos municipais de sustentabilidade ambiental e urbanística (onde são afetas receitas resultantes da redistribuição de mais-valias), ocupando vazios urbanos, terrenos expectantes a procura e a definição da densificação estratégia (sobretudo nas zonas com plataformas intermodais).

As CMH são um instrumento de planeamento urgente para as autarquias, se quisermos solucionar, coletivamente, uma das maiores dificuldades que a maioria das famílias portuguesas enfrenta hoje: o problema do acesso à habitação.

Saibamos, por isso, planear antes de executar.


Publicado em Espaço de Arquitetura, a 5 de abril de 2023.

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